Há quem diga que a ficção é mais estranha que a realidade. Eu até concordo, regra geral, com esta afirmação, não fosse a própria realidade desmenti-lo, de quando em vez. O que se segue é uma história real. Qualquer semelhança com a ficção é pura coincidência.
Final de tarde de um qualquer dia de Verão do ano passado. Carrego um remo de metal em cada uma das mãos, depois de uma hora a tentar remar, num esforço inglório, 200 metros do rio Alva. Um rápido pequeno, mas muito eficaz como obstáculo, fez com que andasse para cima e para baixo, para cima e para baixo, até me cansar das mesmas árvores, do mesmo moinho, da mesma água. Dirijo-me em passo lento para o bar, a arrastar os pés o mais que posso. Gosto do som que as sandálias fazem quando deslizam por entre a folhagem.
Chego ao bar, entrego os remos, peço uma cerveja de pressão. Apoio um dos cotovelos no balcão e rodo o tronco. Detenho-me a olhar para uma longa fila de mesas de madeira, com bancos corridos de madeira, uma ou outra ocupadas por trabalhadores em final de dia de trabalho, bebendo as indefectíveis minis. Para lá das mesas uma paisagem que me parece um quadro impressionista: um curso de água ladeado por árvores grandes e frondosas que deixam entrar fios de luz, esbatendo no espelho de água o reflexo das árvores. Momento perfeito, diria, quando, de repente, ouço um escarcéu digno da defunta feira popular.
- O que é que se vai passar aqui? pergunto à dona do bar.
- Ah, é um ilusionista que já vem cá pelo segundo ano e está a preparar o aparato para o espectáculo de hoje à noite. Mas já lhe disse: 'olhe que é a última hipótese que lhe dou!'.
- Então porquê?
- O ano passado começou a beber estava ainda a preparar o espectáculo e quando chegou o momento tiveram que o levar em braços dali para fora. E isto já cheio de pessoas, famílias com crianças, à espera do que não se realizou. Olhe, foi uma vergonha para mim e para o homem. Este ano voltou a aparecer, mas eu disse-lhe: 'olha, tu porta-te bem senão acabo logo com o arraial num piscar de olhos'.
- Pois, digo eu, mais um golo na ‘jola, enquanto a observo a esfregar vigorosamente o balcão.
A dada altura, um homem que se encostava, tal como eu, no balcão resolve entrar na conversa:
- Eu também já tive a minha época aqui em Sandomil.
- Ai é? E o que é o que o senhor fazia? (olhe, mais uma cerveja se faz favor).
- Bom, eu tinha um projector e tinha uns filmes e quando as noites estavam quentes projectava-os numa parede ali atrás. Era um autêntico cinema ao ar livre!
- E que filmes é que passava?
- Ora bem, no início da noite projectava grandes êxitos para as famílias. Mas depois, quando a noite se tornava noite, havia um grupo que me desafiava para passar uns filmes...
- Uns filmes?
- Sim, aqueles filmes, está a ver? Só para adultos...
- Ah! (bom, havia que responder aos apelos da audiência, penso eu, e aos vários públicos ali presentes na pequena aldeia de Sandomil). Então, e ainda continua a projectar?
- Infelizmente tive que abandonar a profissão...
- Então porquê?
- É que numa dessas noites, e se a noite já ia bem longa!, estava a passar um desses filmes quando de repente entra uma família inteira no local da projecção. O homem ficou tão doido que só tive tempo de agarrar no projector, pegar na minha Casal (mota) e arrancar a toda a velocidade de Sandomil. Só parei em São Gião. Deixei-me disso e não apareci por ali durante uns tempos valentes.
Sandomil, terra pitoresca. Uma fatalidade para os vendedores de ilusões.
8 comentários:
ahahahaha!!!!!
Se fosse numa famel tinha fugido mais rápido.
(gramo as tuas histórias)
linda história, nas proximas férias quero ir a Sandomil!
ana, :)
FAMEL aka fodasse-a-mota-é-linda? pois é, d. inês, se calhar teria chegado mais depressa.
sete, aposto que em Barcelona não encontras estes marados de elevadíssimo gabarito. um dia vamos lá as duas, 'bora?
começando pelo nome e passando pelo personagens, se non e' vero e' ben trovato
Obrigada pelo link! :) Tinha perdido o teu blog (e procurei que nem doida!) Ainda bem que me achaste :)
Essa foto traz-me boas recordações. E eu lembro-me de ouvir falar no senhor que projectava filmes :) É verdade, sim!
Não vou a Sandomil há vários anos. Tenho medo que tenha deixado de ser aquilo que me lembro...
(PS: O rio Alva tem os seus segredos mas não há nada que muitas férias de Verão lá passadas não resolvam)
querida inês,
ainda bem que me/nos encontrámos. e porque o prometido é devido, aí ficou a história com dedicatória.
um beijo
para o resto da audiência, este post deriva de um outro. e de deriva em deriva, já se sabe, vão-se tecendo histórias.
(aqui vai o link onde tudo começou:)
http://oitoecoisa.blogspot.com/2007/08/tanto-rio.html
Enviar um comentário