16 julho 2007

Eleições

A propósito das eleições de ontem e deste post, lembrei-me das legislativas pós queda do Santana Lopes. Toda a gente se mobilizou para ir votar, até pessoas que não votavam há décadas tiraram o cartão de eleitor do fundo do baú. Depois de meses em república das bananas todos os votos eram importantes para mostrar o desagrado pela herança do Durão.
A minha avó, muito velhinha e já quase cega de uma doença degenerativa disse que se fosse às urnas votava no pessegão. A medo perguntámos-lhe quem era, suspirámos de alívio quando a santa senhora disse que era o Sócrates. Imbuída de espírito cristão e consciência cívica a minha irmã ofereceu-se para a levar a votar nesse domingo. Havia apenas um pequeno problema a contornar: como a senhora tem apenas visão periférica, não consegue ler e ainda menos pôr a cruz no sítio certo sozinha. Ligámos para a Junta de Freguesia, onde nos informaram que quem não vê não pode votar. Indignada com esta resposta, então os cegos não têm palavra nestas matérias?, liguei de imediato para a ACAPO. Disseram-me então que quem não vê pode de facto votar, mas para tal tem de apresentar o cartão dessa associação ou levar atestado do médico para a mesa de voto, para se fazer acompanhar de alguém que coloque a cruz por si.
Informei a minha irmã, que ficou de tratar de tudo. Chegado ao fatídico domingo recebo um telefonema - não posso levar a avó a votar, podes ir tu? Então e o papel do médico? olha, não tratei, mas se disse à avó que a levava a votar tens mesmo de o fazer, já sabes como é.
Pois, sei bem como é. Com a minha avó e o meu pai não há imprevistos, se se combina alguma coisa é para cumprir, dê lá por onde der. Sem saber bem como lidar com esta situação fui buscar a senhora, já toda arranjada para ir cumprir o seu direito e dever, meti-a no carro e fui pensando como raio ia contornar o assunto à boca das urnas.
Fomos à escola onde a minha avó vota, procurei a sua mesa e encontrámos bichas em todas as salas (bem diferente deste domingo). Fomos andando devagarinho até chegar a nossa vez. Aproximámo-nos da mesa, estendi os documentos da minha avó e anunciei-lhes o problema. Como um drama nunca vem só, a minha avó também é surda. Quando a senhora me dizia alguma coisa a minha avó dizia muito alto "o que é que ela disse filha?", e eu tinha de repetir tudo aos berros.
Com o meu ar mais tranquilo e sorriso idiota, anunciei-lhe que a minha avó é quase cega e que seria preciso que eu fosse com ela para pôr a cruz onde ela queria. A senhora, perplexa, disse-me que isso não seria possível. "AVÓ, NÃO ME DEIXAM IR, VAI TER DE IR SOZINHA". Ah, filha, mas eu não vejo nada, qual é aquele que eu quero? "É O QUARTO QUADRADO" oh filha, não percebo nada, não vejo, indica-me aí onde é que eu tenho de pôr a cruz. Discretamente pus-lhe o dedo ao lado do sítio certo "AQUI FILHA?". A mulher estava prestes a ter um ataque cardíaco. "não pode fazer isso, é ilegal". Sim avó, agora vá ali, tem aqui a caneta, ponha a cruz.
A minha avó pôs a cruz e saiu com o boletim na mão por dobrar, acenando-o à frente de toda a gente. "Oh filha, vê lá se pus a cruz no sítio certo". Nessa altura a presidente da mesa perdeu a cor e deixou de conseguir dizer frases completas. Dobrei o boletim de voto, enfiei-o na urna, recolhi os documentos e saí sorrindo a todos, como se a surda fosse eu.
Ainda hoje a minha avó está convencida que ajudou à vitória do Sócrates. Só eu vi que a cruz ficou ao lado do quadrado.

6 comentários:

na prise és bestial disse...

o que se faz por um pessegão.

Anónimo disse...

Viv'Ávó!!!

o chofer a dançar com a criada disse...

hahahhahahahhahahhahahahha, que história adorável!
faz-me lembrar o meu avô das poucas vezes que fui com ele ao cinema, quando ele simplesmente insistia em ignorar tudo e todos à sua volta e ía comentando o filme alto e bom som como se estivesse em casa: "olha para este agora olha...atão ele vai ter com o outro?" e por aí a fora. visto que eu na altura me enterrava toda na cadeira a morrer de vergonha não percebo pk é que agora qdo me lembro disso tenho tantas saudades...

sete e pico disse...

é linda esta história!!! e saí sorrindo a todos como se a surda fosse eu :)))))

e deu-me aqui um apertezinho no peito com as saudades dos avós, uma angústia fininha como dizia uma amiga minha..

nove e tal disse...

pessegão é lindo!
hahahahahaha!
linda história!

Anónimo disse...

Eu herdei o relógio de bolso do meu Avô. E às vezes ando com ele. Quando as saudades apertam.