23 julho 2007

Frilance

Algumas de nós puseram para bem longe a ideia de um emprego para toda a vida. Os nossos pais tremem de cada vez que anunciamos que nos vamos despedir, mudar de país, mudar de vida. Tentam convencer-nos que somos já crescidas, que temos de ter um emprego e um salário e tudo o vem atrás, colegas, chefes, fretes, o esplendor da vida adulta das intrigas e das guerras no trabalho, os sapos engolidos com copos de água que envenenam os dias e as noites. Uma e outra vez, paramos e mudamos tudo. Arriscamos tudo. Largamos um salário catorze meses por ano, nãoseiquantos dias de férias, largamos os descontos para isto e para aquilo, a preocupação com a reforma, o dia-a-dia da miséria que sobe aos olhos vem às mãos aos sorrisos ao amor mal soletrado.
Apesar da certeza de que não queremos os dias burocráticos, que não queremos estar ali (onde quer que ali seja) durante meses e anos sem fim, apesar da breve alegria de nos sentirmos livres para qualquer coisa que queiramos agarrar, apesar de tudo isso, há o penoso momento em que nos fazem a pergunta que não devem fazer: o que fazes tu na vida?
Podemos sempre testar respostas que deixem o nosso interlocutor sem vontade de saber mais, trafico armas, sou prostituta, não faço absolutamente nada. Ou podemos tentar responder mesmo, e damos por nós numa explicação confusa e interminável, que começa no tempo em que os dinossauros ainda falavam e termina no exacto momento em que nos atiraram a pergunta que não deviam ter feito.
Há dias, encontrei a resposta que, em três sílabas, sossega a pessoa que pergunta: frilance. Sou frilance. Depois destas três sílabas, não há mais dúvidas nem olhares pesarosos. E podemos voltar tranquilamente aos croquetes que ficaram suspensos em perguntas difíceis.

9 comentários:

o chofer a dançar com a criada disse...

magnífico! obrigada por me salvares a vida! :)))))

8 e coisa 9 e tal disse...

sempre às ordens, querida chofer.

D. Ester disse...

quando me perguntam o que faço costumo responder "o mínimo indipensável", com o ar mais sério que tenho para dar - normalmente não me chateiam mais. Que raio de mundo este, em que as pessoas acham que uma profissão define o que o outro é.

Anónimo disse...

E ninguém pergunta:
O que fazes tu da vida?

D. Ester disse...

as pessoas que faziam essa pergunta deixaram de ser convidadas para eventos sociais. Provocavam surtos depressivos nos convivas.

8 e coisa 9 e tal disse...

manyfaces, os que fazem essa pergunta (se é que eles existem) são de uma espécie angustio-existencial já em extinção. Pode-se sempre responder como o futre: e tu, manuela, que fazes tu da vida?, e regressamos alegremente ao croquete.

sete e pico disse...

e às vezes quando se diz com ar despachado: sou "frilanace", ainda respondem com admiração: que interessante!

dizia ela baixinho disse...

"...esta vírgula maníaca, este modo funcionário de viver..."

tb sou frilance. agora já sei o q sou. obrigada oitoecoisa frilance-como-eu.

Ruiva disse...

Tenho de experimentar... è que já estou por tudo! E aquele momento em que imaginas que partes a cara toda à pessoa que te pergunta?!?...