Aproxima-se o referendo e por essa blogosfera fora aumentam as postas sobre o tema, uns a favor do sim, outros acérrimos defensores do não. Eu confesso que já não tenho paciência para argumentar o tema, a minha veia democrática colapsa quando ouço falar na humanidade do embrião, na consciência que as mulheres devem ter para proteger-se de uma gravidez não desejada, no direito à vida. Dá-me vómitos, arrepios, eczemas e outras coisas piores. Não suporto a hipocrisia das organizações que defendem o direito à vida e que, pretendendo ser coerentes, criam organizações para apoiar a mulher grávida. Mas então a defesa da vida do bebé acaba no momento do seu nascimento? Se um filho ou filha é para toda a vida como é que se podem desejar que ele ou ela nasçam sem ser desejados, queridos, sonhados? Mas não vou argumentar se é uma questão do direito ou da ética, dos direitos das mulheres sobre o seu corpo ou da vida do embrião, enfim, deixo isso para outros bloggers que o farão melhor que eu.
Mas pela importância do tema também não quero deixar passar em branco esta fase pré-referendo, por isso vou contar a minha vivência pessoal.
Há mais de dez anos atrás fiquei grávida, tinha vinte e poucos anos, ainda não tinha acabado o meu curso, andava louca de amores por um homem muito especial, mas casado, com filhos e mulher. Naqueles arrebatos de loucura desenfreada e de sexo místico, uma das noites achei que o preservativo era desnecessário, que nada nos iria passar a nós, ao nosso amor protegido pelos deuses. Acho que quando se é jovem pensa-se que se é imortal e incólume aos males dos mundo, o mundo é hoje e agora e o amanhã nada passará. Resultado, teste da gravidez positivo. O mundo desabou, ainda tentei durante uns dias fazer de conta que não era nada comigo mas não foi possível, andava num tal estado de elevação, parecia que pairava no ar, e ele adivinhou o que me estava a passar sem que eu o dissesse. Ainda sonhámos durante uns dias em como seria se tivéssemos o bebé, se fosse uma menina, pois ele só tinha rapazes com a sua mulher, em como contaríamos à minha família (os meus pais) e à sua (mulher e filhos) da nossa alegria e da nova criança que aí estava para vir e que queríamos que fosse amada por todos. Enfim, sonhámos e iludi-me por um tempo, até que de repente tive um ataque de realidade e pensei em tudo aquilo que ainda queria fazer, na minha ânsia de descobrir o mundo, a mim, de liberdade, de viajar, nas possibilidades reais da nossa relação. E é aí que ele me diz Tu é que sabes, eu faço o que tu quiseres fazer... Esta frase foi crucial na minha decisão, não foi claro o único factor mas fez-me cá dentro um click, um aperto no peito. Então e ele, qual é que era o papel que ele estava disposto a assumir e a dar, qual era a sua vontade, apenas um reflexo da minha? Acho que começou aí o meu desamor por ele que ainda mais confirmava a minha decisão.
E através de uma amiga que tinha uma amiga que sabia de uma médica que fazia anjinhos, como dizia a minha avó que era sábia e que já tinha passado pelo mesmo, lá fui, determinada a fazer o que tinha que ser feito acompanhada por duas amigas. A última coisa que vi antes de entrar para a sala foi a Serenela Andrade a dizer que alguém tinha ficado alapardado, em vez de apardalado, e isso foi o mote para ter um ataque de riso, como sempre acontece quando fico muito nervosa ou tensa com alguma coisa.
Hoje mais de dez anos passados, claro que sinto a culpa e o desconforto, não se fica incólume, sofrem-se dores físicas e psicológicas, na altura e até muito tempo depois, senti remorsos, martirizei-me pensando em como seria se tivesse ido para a frente com a gravidez, como seria a criança, enfim. Mas bem feitas as contas e a prova dos nove, olhando para trás na minha vida, não me arrependo de ter abortado, assim com todas as letras, a minha vida teria sido muito diferente e não como a sonhei e desejei. E ainda mais reforço este meu não arrependimento tendo agora uma filha que foi muito desejada e sabendo tudo o que implica a gravidez, o nascimento e a criação de uma criança. Fiz uma opção, e tive a sorte de não ter sido julgada e condenada por tribunais e leis que ainda acreditam que o direito à vida é o direito a nascer.
Eu também acredito no direito à vida, mas a uma vida mais além da possibilidade de respirar este ar que nos rodeia. Acredito que cada criança quando nasce tem o direito de ser desejada e amada e que cada mulher e cada homem quando ficam grávidos têm direito a escolher qual o projecto de vida que desejam, têm direito a querer ser ou a não querer ser pai e mãe. E mais não digo. Agora só resta esperar pelo referendo.