20 abril 2007

Histórias de estradas (I)

Joshua tree

Deserto do Mojave (Arizona), Setembro, 1996.

Se não fosse o ar condicionado do carro já tinha derretido de certeza. Aliás, tudo parece liquefazer por aqui: os cactos gigantes em forma de tridente, as joshua trees (a única vegetação que tenho visto) as pedras, os abutres, os sinais de trânsito, tudo. O ar, ao fundo, assemelha-se a uma massa espessa e turva. Quase que jurava que podia chegar lá com uma colher, tirar um bocado e comer. Não estou dentro de um quadro de Dali, mas não devo andar muito longe.


Estou cansada, apetece-me enfiar qualquer coisa fresca pela goela abaixo e esticar as pernas, já passei a fase da fome. Quebro o silêncio e proponho ao M. uma paragem para beber a dita, não importa onde, o primeiro sítio que encontrarmos. Estou farta da paisagem cromatico-monótona do deserto, do ar hipocritamente fresco da ‘gaiola’ que nos desloca de um lado para o outro a não-sei-quantas-miles-per-hour (não esquecendo as vantagens das mudanças automáticas). Fizemos uma grande tirada hoje e amanhã temos de chegar a Los Angeles. Depois, começar a subir a A1 em direcção a San Francisco (não sei porquê, tenho cá uma fezada por esta cidade). Não faço ideia onde vamos dormir, eu e o M., como estamos amuados desde ontem, não conversámos pelo caminho: mais de 500 km autistas, tomar decisões não está fácil. Por mim, terminava o dia aqui, bebia a tal fresca, reclinava os bancos para trás and end of story.


Vejo umas luzes a piscar ao fundo, as neon lights às quais já me habituei por estas bandas. Ou é motel ou é bar (ou então as duas coisas, melhor ainda). Hum, não me parece motel, não diz vacancies. Será um daqueles dinners de estrada? Também serve, gosto da mística dos dinner- in-the-middle-of-nowhere (parece que estou no meio de um videoclip do Tom Waits, menos mal): tudo e todos de passagem, o café servido directamente da cafeteira para a mug, menus de elevado teor calórico, autênticas bomba de colesterol.


Arriscamos, saímos do carro, levamos com o bafo quente do deserto que nos bate no rosto com a força de uma chapada e aproximamo-nos do edifício: afinal sempre é bar. Vejo umas portas de madeira a 2/4, daquelas que têm gonzos e que têm que ser empurradas para dentro. Percebo, então, que – caraças - estou mesmo no farwest: é um saloon! [Bem-feita, não era eu que queria ter experiências novas e verdadeiras? The real thing?] Respiro fundo, empurro as duas portas com as duas mãos e ouço – vindo de dentro do saloon– a mais insólita saudação de sempre:


- WELCOME TO HELL!!!

[Continua]

4 comentários:

o chofer a dançar com a criada disse...

fogo! se não estivesse lá o (continua) no final do texto, eu exigia um! brilhantemente escrito!!!
quero ler mais!!!!!!! grandiosos parabéns. fizeste-me lembrar sam shepard que adoro.

o chofer a dançar com a criada disse...

e last but not least, já agora a guitarra de ry cooder em fundo.... adorei mesmo!!!

Elipse disse...

aguardo a continuação. para já, estou a gostar muito.

8 e coisa 9 e tal disse...

o chofer a dançar com a criada, obrigada! a comparação com o 'mestre' só pode ser mera coincidência... ainda bem q gostaste e o q vem aí é de facto... logo escreverei. ry cooder como OST para este post é, de facto, bem pensado. desde ontem q me gira na cabeça o 'paris texas' e aquela introdução com a guitarra.

elipse, obrigada pela visita, leitura e comentário. gosto do seu blogue!