23 abril 2007

Histórias de estradas (II)


- WELCOME TO HELL!!!

[freeze!]
Olho para o M., o M. olha para mim. Tarde demais para voltar atrás, já démos uns bons três passos em frente. Tornamos a olhar um para o outro e começamos a dirigirmo-nos em slow motion para o balcão.

Uma longa fila de bancos altos em frente ao balcão está toda ocupada (à excepção de dois lugares à esquerda) por indivíduos que chupam cigarros (estranho, a lei anti-tabaco está mais que promulgada e em vigor aqui nos U.S. of A., penso eu) roem palitos, bebem cerveja e - sobretudo - olham para a nossa lenta caminhada. Todos eles vestem calças de ganga, têm chapéus de cowboy e trazem um sorriso irónico no rosto, observando-nos. Os 'gringos' são eles, não sei o que seremos nós para eles, não temos ar de 'chicanos' (isso já eu tive oportunidade de perceber que não associam o nosso fenótipo aos mexicanos). Passamos por uma área de mesas, onde se sentam mulheres de ar atrevido, entretidas a falar com outros homens, em conversas que adivinho pouco ingénuas.

Chegamos ao balcão, fazendo uma diagonal que nos leva aos dois únicos lugares vazios. Sentamo-nos. O empregado, de copo e de toalha na mão - fingindo que o seca - pergunta-nos o que queremos. Olhamos para a direita e temos toda uma fila de cowboys de olhos postos em nós. Olho para o M. e ele anui com um piscar de olhos. Peço então:

- Duas cervejas, por favor. E uma rodada aqui para os senhores do balcão. É por nossa conta.

Faz-se algum silêncio, o empregado tira duas canecas e enche-as, enquanto nos olha de soslaio. There you are, pousando as cervejas. Começa a servir aqueles que já têm as canecas vazias. Já mais confortável (não tenho colarinho, mas se tivesse desapertava-o), dou um longo golo na cerveja. O silêncio é, então, quebrado pelo cowboy que se senta ao nosso lado, o mesmo que nos saudou assim que franqueámos a porta do bar:

- So, where are you guys from?

Ui, lá vem a pergunta difícil. Considerações à parte em relação aos conhecimentos geográficos dos norte-americanos, decidimos pela resposta mais eficaz: We're from Portugal, next to Spain, Europe. Empurra o chapéu para trás, e troca o palito de um lado para o outro da boca. Estende-nos a mão e diz:

- Nice to meet you, pals. My name is Mule Skinner. And yours?

Dou mais um golo valente na cerveja, tentando perceber o que é aquilo quer efectivamente dizer. Mas o tipo até é simpático e começa-nos a contar uma das histórias mais inverosímeis que alguma vez ouvi: mudou-se com a sua 'companhia' de teatro para o Arizona e ganham a vida a simular tiroteios do velho farwest no próprio do farwest para os turistas que ali passam. Fazem vários espectáculos por dia, que nos relata pormenorizadamente. O Mule Skinner - o seu nome artístico - é um dos dois cowboys que está presente no tiroteio final, naquilo a que aqui chamaríamos de mano-a-mano. Infelizmente, é ele invariavelmente o que morre. O espectáculo acaba com Mule Skinner já dentro do caixão. Olho para ele e, já turvada pela terceira caneca de cerveja, penso que gostaria que - nem que por uma vez, uma só vez - fosse ele o sobrevivente...

Os olhares há muito que se desviaram de nós, deixámos de constituir matéria de interesse e/ou atenção. Mule Skinner pergunta-nos onde vamos pernoitar. M. diz que estávamos a pensar dormir no carro na berma da estrada, the road is long e amanhã temos muitas milhas para fazer. 'Bom, eu se estivesse no vosso lugar não arriscaria. Com a chuva que caiu, todas essas pequenas criaturas mortíferas - escorpiões, lacraus e SÓ a cobra mais venenosa do planeta (a mojave green) saíram das suas tocas, aproveitando this moisty environment. Entram-vos pela parte de parte de baixo do carro e a primeira dentada/picada é letal. Ainda por cima aqui, in this back of beyond. Eu não arriscava'.

Despedimo-nos de Mule Skinner, já emocionado com a partida dos seus mais dois recentes amigos europeus (ou das beers, talvez). Acenamos aos demais, que nos levantam a ponta do chapéu. Faço o mesmo movimento com as mãos na porta que fiz para entrar, empurrando-as no sentido oposto.

Entramos no carro em silêncio e só paramos - depois de cruzada a fronteira dos estados do Arizona com a California - no primeiro motel que se adivinhava da estrada, com o letreiro néon a anunciar vacancies.

3 comentários:

Anónimo disse...

após esta leitura, a sensação de se ter chegado ao fim faz-nos sentir que, como noutras "artes", o essencial é o caminho e não o destino

Anónimo disse...

e a história... "pelo menos temos a história para contar" in "A Biblia do Humor Judaico"

o chofer a dançar com a criada disse...

boas vacancies! ;)
adorei!!