foto in Câmara Clara
- O café da brasileira friorenta, cuja barriga vai aumentanto, numa gravidez já mais que anunciada, sintonizando e olhando para o écran, tristemente, o canal GNT, a ver se resgata algum calor e notícias da sua terra. A literatura espalhada por cima das mesas é péssima: correio da manhã, maria e quejandos, um ou outro jornal desportivo, muita imprensa cor-de-rosa. E os piores croquetes do mundo. A sistemática falta de trocos dissuadiu-me de vez de lá voltar. Preciso de cigarros como de pão para a boca e logo de manhã. Continuo a passar pela rua e lá vou acenando adeuses e sorrisos à menina da barriga cada vez mais proeminente.
- Um café que também serve almoços e jantares, mas cuja porta fecha à tarde. Para beber café é preciso bater à dita. O dono - que serve a clientela de óculos escuros - espreita pelo postigo e lá se decide a abrir o tasco. Às vezes, parece-me que estou no meio de um episódio dos 'Sopranos', a avaliar pelas criaturas que por ali pairam. Também nunca tem trocos para os cigarros.
- O café dos octogenários do bairro. E da presidente da junta de freguesia, que bebe sumol e engole rissois e sanduiches de queijo à hora do almoço. 'Olha a nossa 'chefa', dizem os habitués assim que ela entra.
Depois de pacientemente testados, a minha opção foi para o último café, sobretudo pelas milhentas histórias que ali ouço quotidianamente. O café não é nada de especial, mas gosto de ver as mesmas pessoas e as caras que já reconheço - e que já me reconhecem - e com quem troco bons-dias. A dona, de idade indefinida, é gentil e isso somou pontos extra. E tem sempre os cigarros que quero, sem necessidade de máquinas e de trocos intermediadores.
Outro dia fui interpelada pela minha cara-metade: 'Querida, porque não vais aquele café ali ao pé da avenida? É um bocado mais longe, mas o ambiente é simpático'. Já por lá passei e era incapaz de o transformar na minha catedral onde emborco a minha primeira dose de cafeína. Aquele sítio de arquitectura e design impecáveis não são para mim, parece uma redoma deslocada da vida como ela é. Incaraterístico. Prefiro o café dos octogenários, onde as pessoas são pessoas-pessoas e onde se respiram vidas autênticas. Quanto aos cafés fashion deixo-os para outros: aqueles que estão preocupados em serem pessoas-que-não-elas-próprias, como se aqueles lugares lhes pudessem conferir histórias e estatuto que não lhes pertencem. Mas a sério, a sério, e considerações à parte, o que eu tenho mesmo é um fascínio por espeluncas...
No meu bairro, num raio de 100 metros, há 3 cafés. Como não moro nesta zona há muito tempo, foi-me difícil acertar a escolha e tive que os testar um por um. As opções eram estas:
- O café da brasileira friorenta, cuja barriga vai aumentanto, numa gravidez já mais que anunciada, sintonizando e olhando para o écran, tristemente, o canal GNT, a ver se resgata algum calor e notícias da sua terra. A literatura espalhada por cima das mesas é péssima: correio da manhã, maria e quejandos, um ou outro jornal desportivo, muita imprensa cor-de-rosa. E os piores croquetes do mundo. A sistemática falta de trocos dissuadiu-me de vez de lá voltar. Preciso de cigarros como de pão para a boca e logo de manhã. Continuo a passar pela rua e lá vou acenando adeuses e sorrisos à menina da barriga cada vez mais proeminente.
- Um café que também serve almoços e jantares, mas cuja porta fecha à tarde. Para beber café é preciso bater à dita. O dono - que serve a clientela de óculos escuros - espreita pelo postigo e lá se decide a abrir o tasco. Às vezes, parece-me que estou no meio de um episódio dos 'Sopranos', a avaliar pelas criaturas que por ali pairam. Também nunca tem trocos para os cigarros.
- O café dos octogenários do bairro. E da presidente da junta de freguesia, que bebe sumol e engole rissois e sanduiches de queijo à hora do almoço. 'Olha a nossa 'chefa', dizem os habitués assim que ela entra.
Depois de pacientemente testados, a minha opção foi para o último café, sobretudo pelas milhentas histórias que ali ouço quotidianamente. O café não é nada de especial, mas gosto de ver as mesmas pessoas e as caras que já reconheço - e que já me reconhecem - e com quem troco bons-dias. A dona, de idade indefinida, é gentil e isso somou pontos extra. E tem sempre os cigarros que quero, sem necessidade de máquinas e de trocos intermediadores.
Outro dia fui interpelada pela minha cara-metade: 'Querida, porque não vais aquele café ali ao pé da avenida? É um bocado mais longe, mas o ambiente é simpático'. Já por lá passei e era incapaz de o transformar na minha catedral onde emborco a minha primeira dose de cafeína. Aquele sítio de arquitectura e design impecáveis não são para mim, parece uma redoma deslocada da vida como ela é. Incaraterístico. Prefiro o café dos octogenários, onde as pessoas são pessoas-pessoas e onde se respiram vidas autênticas. Quanto aos cafés fashion deixo-os para outros: aqueles que estão preocupados em serem pessoas-que-não-elas-próprias, como se aqueles lugares lhes pudessem conferir histórias e estatuto que não lhes pertencem. Mas a sério, a sério, e considerações à parte, o que eu tenho mesmo é um fascínio por espeluncas...
9 comentários:
Eu também acho que cafés fashion só depois das 22h00... Antes disso são profundamente deprimentes. Mas isso sou eu.
Bjs!
ahahahha
muito bem contado visto que quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto (ou dois).
:)
em jeito de resposta a desafio:
era uma bica, por favor
preciso de mexer a minha vida,
não pretendo adoçar a dor
dissimulada na mesa polida
entra gente, sempre a balir
tão iguais, olá tio
nenhum sentirá o frio
está já agora. vais sair
no chão, reparo agora,
um fio verde, quase invisível,
ah sensação imperdível,
mais outra vez perdi a hora.
e eis-me pr'aqui numa cadeira,
sem sequer te poder ver,
à procura de outra maneira
com que te possa responder.
"Prefiro o café dos octogenários, onde as pessoas são pessoas-pessoas e onde se respiram vidas autênticas."
pois.
Sempre que me sentava no café ficava a olhar para aqueles azulejos com umas palmeiras distantes. O contraste com o resto do café e com a clientela produzia um efeito curioso... A pergunta já me andava a fazer comichão há bastante tempo, até que um dia lá atirei:
- Sô Manel, porque raio tem o café este nome?
- Não faço a mínima ideia.
- ??? mas o senhor não trabalha aqui desde sempre, como não faz ideia?
- Uma vez perguntei ao primeiro Dono. Ele encolheu os ombros e não respondeu...
O Dono, alguém que nos anos 50 pegou na família e nas poupanças amealhadas numa vida de trabalho em Paredes de Coura, chegou um dia com os írmãos-sócios à conservatória do registo comercial de Lisboa. Era a segunda vez que vinha a Lisboa depois de ter comprado aquele rez-do-chão, em construção no novo bairro de Alvalade, onde instalaria o seu café. Quando confrontado pela conservadora com a necessidade de dar um nome ao estabelecimento, disse "Os Courenses", nome que já 10 anos antes ele tinha escolhido quando sonhou que levaria a família para Lisboa, daria sociedade aos irmãos e seria feliz...
A conservadora consultou o registo, informou-o que esse nome já existia no mesmo bairro, pediu-lhe outro nome e esperou... batendo a caneta no livro de registo, compassadamente....
Ele olhou para os irmãos que desviaram olhar, embaraçados, colocou as duas mãoes sobre a mesa e atirou no tom mais firme que encontrou: "A Senhora Conservadora faça-me então o favor de verificar se pode ser Nova Bagdad".
Durantes uns meses vivi em Alvalade e não é que de todos os cafés que por lá existem foi esse precisamente o que elegi para tomar o galão de máquina e ler o jornal?. Linda, a coincidencia.
E quanto ao texto, gostei muito desta crónica da vida quotodiana.
olha o manyfaces é mesmo vizinho... e já terá descoberto o aviário que vende artigos de pesca? Os croissants da nova loja de frutas, mesmo no largo de alvalade, são uma categoria - apesar dos meus favoritos de sempre serem os da carcassone. É que não há amor como o primeiro.
quanto à cafeina matinal, gozo da minha fabulosa maquina de café expresso caseira e do silêncio indispensável à minha transformação de monstro em pessoa.
Natas no café Helsinquia.
Café (sempre) no Nova Bagdad.
Jornais no Kazak.
Jantares no Courenses.
Marisco no Tico-Tico.
Gulodices na mercearia da Mariazinha.
Alheiras de caça e cerejas gigantes na Charcutaria Riviera.
Peixe fresco ao Sábado na Praça de Alvalade.
Fruta no Sadik na praça de Alvalade.
Palmieres na casa do Bom Bacalhau.
...e é por estas e por outras que não me consigo mudar para outras paragens...
citadina, eu nem depois das 22:00. tenho uma espécie de reacção visceral aos néons e às decorações minimalistas, e aos estofos a cheirar a novo.
f.m.reis, não acrescentei ponto a este conto! está lá tudo, como se de um diário de campo se tratasse. ;)
poet bomber (the return), quanta inspitação matinal! gostei! quem lançou o repto?
manyfaces, a história q relatas é muito linda. e agora já sei/sabemos onde esbarrar ctg com tanta coordenada q nos deste. já morei em alvalade e era, de facto, um bairro bem simpático. não ia ao 'nova bagdad', antes ao nova lisboa. tico-tico ai q saudades...
sete e picos, no fundo no fundo a malta entende-se, não é?! ;)
no baile da d. ester, estou aqui p desmentir o facto de seres um monstro de manhã. a lady is always a lady. e aí não falhas nunca! :)
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