05 abril 2007

No meu bairro (I)

foto in Câmara Clara

No meu bairro, num raio de 100 metros, há 3 cafés. Como não moro nesta zona há muito tempo, foi-me difícil acertar a escolha e tive que os testar um por um. As opções eram estas:

- O café da brasileira friorenta, cuja barriga vai aumentanto, numa gravidez já mais que anunciada, sintonizando e olhando para o écran, tristemente, o canal GNT, a ver se resgata algum calor e notícias da sua terra. A literatura espalhada por cima das mesas é péssima: correio da manhã, maria e quejandos, um ou outro jornal desportivo, muita imprensa cor-de-rosa. E os piores croquetes do mundo. A sistemática falta de trocos dissuadiu-me de vez de lá voltar. Preciso de cigarros como de pão para a boca e logo de manhã. Continuo a passar pela rua e lá vou acenando adeuses e sorrisos à menina da barriga cada vez mais proeminente.
- Um café que também serve almoços e jantares, mas cuja porta fecha à tarde. Para beber café é preciso bater à dita. O dono - que serve a clientela de óculos escuros - espreita pelo postigo e lá se decide a abrir o tasco. Às vezes, parece-me que estou no meio de um episódio dos 'Sopranos', a avaliar pelas criaturas que por ali pairam. Também nunca tem trocos para os cigarros.
- O café dos octogenários do bairro. E da presidente da junta de freguesia, que bebe sumol e engole rissois e sanduiches de queijo à hora do almoço. 'Olha a nossa 'chefa', dizem os habitués assim que ela entra.

Depois de pacientemente testados, a minha opção foi para o último café, sobretudo pelas milhentas histórias que ali ouço quotidianamente. O café não é nada de especial, mas gosto de ver as mesmas pessoas e as caras que já reconheço - e que já me reconhecem - e com quem troco bons-dias. A dona, de idade indefinida, é gentil e isso somou pontos extra. E tem sempre os cigarros que quero, sem necessidade de máquinas e de trocos intermediadores.

Outro dia fui interpelada pela minha cara-metade: 'Querida, porque não vais aquele café ali ao pé da avenida? É um bocado mais longe, mas o ambiente é simpático'. Já por lá passei e era incapaz de o transformar na minha catedral onde emborco a minha primeira dose de cafeína. Aquele sítio de arquitectura e design impecáveis não são para mim, parece uma redoma deslocada da vida como ela é. Incaraterístico. Prefiro o café dos octogenários, onde as pessoas são pessoas-pessoas e onde se respiram vidas autênticas. Quanto aos cafés fashion deixo-os para outros: aqueles que estão preocupados em serem pessoas-que-não-elas-próprias, como se aqueles lugares lhes pudessem conferir histórias e estatuto que não lhes pertencem. Mas a sério, a sério, e considerações à parte, o que eu tenho mesmo é um fascínio por espeluncas...

9 comentários:

Anónimo disse...

Eu também acho que cafés fashion só depois das 22h00... Antes disso são profundamente deprimentes. Mas isso sou eu.
Bjs!

Filipe M. Reis disse...

ahahahha
muito bem contado visto que quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto (ou dois).
:)

Anónimo disse...

em jeito de resposta a desafio:

era uma bica, por favor
preciso de mexer a minha vida,
não pretendo adoçar a dor
dissimulada na mesa polida

entra gente, sempre a balir
tão iguais, olá tio
nenhum sentirá o frio
está já agora. vais sair

no chão, reparo agora,
um fio verde, quase invisível,
ah sensação imperdível,
mais outra vez perdi a hora.

e eis-me pr'aqui numa cadeira,
sem sequer te poder ver,
à procura de outra maneira
com que te possa responder.

nana disse...

"Prefiro o café dos octogenários, onde as pessoas são pessoas-pessoas e onde se respiram vidas autênticas."

pois.

Anónimo disse...

Sempre que me sentava no café ficava a olhar para aqueles azulejos com umas palmeiras distantes. O contraste com o resto do café e com a clientela produzia um efeito curioso... A pergunta já me andava a fazer comichão há bastante tempo, até que um dia lá atirei:
- Sô Manel, porque raio tem o café este nome?
- Não faço a mínima ideia.
- ??? mas o senhor não trabalha aqui desde sempre, como não faz ideia?
- Uma vez perguntei ao primeiro Dono. Ele encolheu os ombros e não respondeu...


O Dono, alguém que nos anos 50 pegou na família e nas poupanças amealhadas numa vida de trabalho em Paredes de Coura, chegou um dia com os írmãos-sócios à conservatória do registo comercial de Lisboa. Era a segunda vez que vinha a Lisboa depois de ter comprado aquele rez-do-chão, em construção no novo bairro de Alvalade, onde instalaria o seu café. Quando confrontado pela conservadora com a necessidade de dar um nome ao estabelecimento, disse "Os Courenses", nome que já 10 anos antes ele tinha escolhido quando sonhou que levaria a família para Lisboa, daria sociedade aos irmãos e seria feliz...
A conservadora consultou o registo, informou-o que esse nome já existia no mesmo bairro, pediu-lhe outro nome e esperou... batendo a caneta no livro de registo, compassadamente....
Ele olhou para os irmãos que desviaram olhar, embaraçados, colocou as duas mãoes sobre a mesa e atirou no tom mais firme que encontrou: "A Senhora Conservadora faça-me então o favor de verificar se pode ser Nova Bagdad".

sete e pico disse...

Durantes uns meses vivi em Alvalade e não é que de todos os cafés que por lá existem foi esse precisamente o que elegi para tomar o galão de máquina e ler o jornal?. Linda, a coincidencia.

E quanto ao texto, gostei muito desta crónica da vida quotodiana.

D. Ester disse...

olha o manyfaces é mesmo vizinho... e já terá descoberto o aviário que vende artigos de pesca? Os croissants da nova loja de frutas, mesmo no largo de alvalade, são uma categoria - apesar dos meus favoritos de sempre serem os da carcassone. É que não há amor como o primeiro.

quanto à cafeina matinal, gozo da minha fabulosa maquina de café expresso caseira e do silêncio indispensável à minha transformação de monstro em pessoa.

Anónimo disse...

Natas no café Helsinquia.
Café (sempre) no Nova Bagdad.
Jornais no Kazak.
Jantares no Courenses.
Marisco no Tico-Tico.
Gulodices na mercearia da Mariazinha.
Alheiras de caça e cerejas gigantes na Charcutaria Riviera.
Peixe fresco ao Sábado na Praça de Alvalade.
Fruta no Sadik na praça de Alvalade.
Palmieres na casa do Bom Bacalhau.

...e é por estas e por outras que não me consigo mudar para outras paragens...

8 e coisa 9 e tal disse...

citadina, eu nem depois das 22:00. tenho uma espécie de reacção visceral aos néons e às decorações minimalistas, e aos estofos a cheirar a novo.

f.m.reis, não acrescentei ponto a este conto! está lá tudo, como se de um diário de campo se tratasse. ;)

poet bomber (the return), quanta inspitação matinal! gostei! quem lançou o repto?

manyfaces, a história q relatas é muito linda. e agora já sei/sabemos onde esbarrar ctg com tanta coordenada q nos deste. já morei em alvalade e era, de facto, um bairro bem simpático. não ia ao 'nova bagdad', antes ao nova lisboa. tico-tico ai q saudades...

sete e picos, no fundo no fundo a malta entende-se, não é?! ;)

no baile da d. ester, estou aqui p desmentir o facto de seres um monstro de manhã. a lady is always a lady. e aí não falhas nunca! :)