Enilda é uma amiga minha de Apartadó, tem apenas 21 anos mas tem uma capacidade discursiva de quem já passou há muito dos trinta. O pai de Enilda era dono de uma série de bananeiras e sempre viveu em Apartadó. Como todos os donos de quintas bananeiras na zona, foi várias vezes ameaçado pelas guerrilhas, teve de pagar as célebres vacinas, foi raptado e por fim foi morto. Enilda conta-me que uma vez, entrou um homem em casa dela, conhecido da família, pôs uma arma em cima da mesa, um maço avultado de notas, e disse: Dom Pedro, entregaram-me isto para que o matasse. E vim dizer-lhe que eu não consigo, mas que a sua vida corre perigo. Se não for eu, vai ser outro, por isso vá-se daqui e não volte. E o pai de Enilda respondeu: Eu daqui não saio. Que me matem.
Enilda conta tudo isto com a calma de quem lembra coisas que pertencem apenas ao passado. Uma vez, já depois de o seu pai ter sido morto, estava ela a trabalhar num projecto de assistência alimentaria a guerrilheiros que foram reinsertados na vida civil, homens e mulheres em muito más condições físicas, quando viu que um dos homens a quem estava ela a distribuir alimentos era, nada mais nada menos, que um dos raptores do seu pai. Chegou a casa aflita e revoltada, contou o caso à mãe que simplesmente lhe disse: O passado já passou, filha minha, esse homem agora necessita da tua ajuda. Não guardes rancores e faz o teu trabalho o melhor que possas.
A mim impressionou-me as voltas que a vida obriga a dar, a confrontar com os fantasmas do passado e a aprender a deixá-los onde eles pertencem. E também a alegria que tem Enilda pela vida e pelo seu trabalho com vítimas de uma violência que ela também sofreu, e como se sente comprometida com o seu país, com a herança de país que lhe tocou, mas que ela não rejeita, aceita simplesmente. E contou-me tudo isto e mais ainda, com a calma e a certeza de que o passado se deve guardar em sitio visível para não ser esquecido.
Aqui a memória é muito importante na vida das pessoas que de repente perderam tudo à luz da violência que faz parte da vida do país. Quase todos os grupos de desplazados de Urabá, pedem ao governo e às ONGs que lhes financiem monumentos para a sua memória histórica, para lembrar os que não podem ser esquecidos, os mortos que cada comunidade pôs durante o seu processo de vida e de paz.
Mas cada pessoa tem a sua própria história para contar. Todas as pessoas que trabalham connosco directamente, deixaram mortos no caminho. Marley, a secretária, é órfã da violência. O seu pai foi morto por um dos grupos armados e recentemente, outro tio também foi morto sem se saber porquê. Ubaldina, a senhora que nos limpa a casa, é uma viuva da violência. Nos anos negros de Urabá, em 93 e 94, os habitantes de um bairro não podiam cruzar para outro sem terem um licença especial dos grupos armados desse bairro e nunca depois das 6 da tarde. O seu marido era vendedor e no dia em que cruzou a fronteira proibida, deixou esta vida e deixou-a com dois filhos, um dos quais ainda por nascer. Adolfo, o motorista, sofreu a morte de 3 dos seus irmãos, um dos quais sindicalista, também pelos grupos armados.
Agora os anos negros passaram a cinzento claro e o medo continua e as mortes também, mas toda a gente diz que estamos em paz, ou melhor, numa calma tensa. Aqui vivemos rodeados de armas por todos os lados. Legais e ilegais. Ainda outro dia, quando ia de carro para Turbo, vi um paramilitar em plena estrada, sentado com a tranquilidade de quem sabe que controla um determinado território impunemente. Qualquer evento que se faça na cidade, político ou cultural, tem de ter escolta da policia e do exército. Antes de sair para qualquer lado é sempre preciso avisar a policia e o exército e averiguar se se pode ir ou não. Eu da minha parte, já sei o manual de segurança das Nações Unidas todo de cor e salteado. O medo e a prevenção já fazem parte do quotidiano, tanto que já nem dou por eles. Mas o grande medo, dos nacionais e dos internacionais, continua a ser o sequestro.
E a propósito só para concluir a história da última circular, em relação aos deputados sequestrados. Íamos na parte em que os paramilitares tinham sequestrado a 6 deputados para pressionar o governo a não negociar a troca de guerrilheiros por soldados. Agora, a guerrilha congela o processo de paz e acusa os 6 deputados de se autosequestrarem para chamarem as atenções e boicotarem o processo de paz. Na altura em que estiveram a ler isto já vão estar novamente desactualizados, pois aqui todos os dias há novos acontecimentos. Mas neste momento, todos os grupos se prepararam para continuarem a mostrar que são os mais fortes militarmente, para então sim, poderem negociar. É caso para perguntar: Defina negociar...