07 junho 2006

O touro da praça e a vaca do talho

Fui ao verdade-ou-consequencia, li com muita atenção os vários posts sobre as touradas, a propósito das manifestações contra as ditas. Com alguma perplexidade vi as reacções inflamadas de alguns leitores, descobri que há ganadarias a dar com um pau e forcados são mais que as mães.

Foram levantadas várias questões muito pertinentes, uma das quais é: lidamos bem com o que não vemos.

No outro dia fui ao talho, pedi costeletas de borrego; o senhor disse que ia buscar ao frigorifico. Eu estava à espera de ver aqueles bocados de carne amorosos e deliciosos, mas em vez disso o senhor sacou de um tronco completo, com pescoço caixa torácica e tudo. Podia ser uma pessoa, podia ser eu.

Começou a escortanhar aquilo à minha frente com uma destreza impressionante. Garanto-vos que tive de me controlar para não vomitar mesmo ali à porta.

Eu gosto mesmo muito de carne, mas ver aquele pobre borrego ser estraçalhado fez-me pensar que a diferença entre mim e ele é um mísero degrau na cadeia alimentar.

De outra vez, estava de passagem em Espanha, e tinha de escolher entre carne e peixe para o repasto. Escolhi a carne, sem saber que me vinha na rifa cocido gallego, uma versão do nosso cozido. Deliciei-me com uma parte muito boa perto do osso, quando buscava mais da mesma dei a volta a um osso para descobrir que era um maxilar, com uma fileira de dentes iguaizinhos aos nossos, com cáries e tudo. Aquilo deu-me uma noja!! Mas para não dar parte fraca tapei com uma pele que por ali andava e comi as couves.

A pergunta é: isso fez-me deixar de comer carne? sim, porque se eu quiser de facto defender os direitos dos animais com propriedade não posso comê-los. Então vou andar aos gritos “não matem os touros, coitadinhos dos touros” e depois chego ao talho e peço meio quilo de bifes da vazia? Qual é a diferença entre o touro da praça e a vaca do talho?

Eu cá não gosto de touradas, a única coisa que me faz minimamente vibrar são as pegas de caras porque me parecem democráticas. Um touro, 8 gajos 8, corpo a corpo e está a andar.

Também me parece hipócrita a cena de fazer touradas mas ser proibido matar o touro na praça.

Não é uma causa minha, a da abolição das touradas. Mas por uma questão de coerência as pessoas que andam por aí a manifestar-se contra estas festas populares deveriam pensar no franguinho cheio de anabolizantes e antibióticos, que crescem em espaços exíguos; nas vaquinhas que dão leite e vitelos para os bifes; nos borregos das costeletas; na matança do porco, e por aí adiante.

A única causa que tenho é não usar peles verdadeiras, e nessa sou fundamentalista. Não como leopardo, nem martas, nem chinchilas, nem visons.

9 comentários:

Anónimo disse...

Alguém me falou de uma pessoa que não comia, vivia apenas da luz do sol, num estado de meditação crónica. Levando essa linha de argumento até ao fim, apenas essa pessoa teria legitimidade para se manifestar contra as touradas ou o consumo intensivo de recursos naturais escassos. O que resta a quem vive de água e alimentos?

8 e coisa 9 e tal disse...

A questão, para mim, é de coerência.

Quem se manifesta contra as touradas por considerar que os bichos são maltratados para gaudio da assistência se calhar não pensa que viver num estábulo a vida toda pode não ser propriamente a coisa mais alegre do mundo. Bem sei que as vacas são dos animais mais invejáveis, porque mesmo em liberdade vivem como dondocas, comem ervinha, fazem mú, não se mexem o dia todo.

Nos Açores não tenho qualquer problema em comer vaca, basta vê-las tão felizes no prado, ao lado das hortências, para pensar "suas vacas, espera lá que já te como". Mas as que vivem no estábulo e se reproduzem por inseminação artificial, tendo filhos de touros que nunca viram (será que os vitelos pensam que derivam de geração espontânea?), já me parece uma maldade. Ainda para mais a qualidade de vida reflecte-se na qualidade da carne, os que são felizes e livres sabem bem e os que não nem por isso.

como é evidente, as minhas considerações não são para serem levadas à letra. Servem apenas para pensar nisto.

Até fico contente que a sociedade civil se lembre que pode e deve falar por aquilo em que acredita. é um direito inalienável que nos assiste obviamente. Mas há que ser coerente.

Se eu me bater pelo comércio justo e depois for comprar as coisas todas às lojas dos chineses estou-me a trair um bocadinho. Ou não?

Anónimo disse...

opah, cala-te!!!

8 e coisa 9 e tal disse...

Um anónimo mandar-me calar no meu blog. Tem graça, sim senhor. Continua a mandar postais.

Anónimo disse...

e agora? o q faço ao astracan q herdei? o q fazer nestes casos? deverei consultar a p. bobone?

Anónimo disse...

Cara estreladumar,

Sempre alerta quando alguém chama por mim, pelas litradas de chá que ando a beber desde pequena. É sempre um prazer ajudar alguém em apuros.

A questão que me coloca é de facto pertinente. Sugiro-lhe que guarde esse item demodé chic no armário com muitas bolas de naftalina, nunca se sabe quando a chacina pode voltar a estar na moda.

Até lá, aconselho a não usar o item em público. Apesar de eu achar o máximo, os astracans são amorosos só lhe digo, corre o risco de provocar a ira do grupo em crescimento dos activistas anti-peles verdadeiras. São uns chatos de galochas, mas olhe, noblesse oblige.

Com os melhores cumprimentos, disponha sempre

P bobone

Aardvark disse...

Pois é. O problema é que a burra do porco é uma das melhores partes do dito.

E os pézinhos? Ui!

Aardvark disse...

Já agora!

A matança não fica bem na lista.

Porque também é ritualizada.

A festa e partilha fazem parte de uma actividade que é contextualizada e saudável.

Pena já não haver, derivado ao facto de serem proibidas ( not! ).

8 e coisa 9 e tal disse...

incluí a matança pelos mesmos motivos da tourada. Se o touro é maltratado o porco então nem se fala: posto de cabeça para baixo, levar uma facada na jugular e ficar para ali a sangrar e a guinchar parece-me ainda mais horripilante que andar a tourear.

Quanto aos gostos gastronómicos, esses não se discutem. Eu cá gosto de língua de vaca e cabeça de peixe, mas orelhinhas, pés e mandíbulas é que já não dá. lá está voltamos ao argumento do "olhos não vêem, coração não sente". Uma pescadinha de rabo na boca, é o que é.